A Alma da Quena (1)
Por Abraham Waldelomar (1888 / 1919 )
O Inca, sentado no terraço, viu sair a Lua, na paz da noite, ouvindo a mesma rara melodia que escutara no caminho da véspera. Havia detido a sua comitiva. Os músicos interrogaram com as suas flautas, a vanguarda se internou no vale, mas o Inca não soube se aquela melodia dolorosa e estranha era de um homem ou de uma ave. Agora, ouvia algo mais clara, ainda que imperfeita, e aguçava os seus ouvidos para percebê-la melhor. Era um som mesclado de alegria e dor, como um doce protesto, como uma queixa musicada em voz baixa, notas que se filtravam nos nervos como um punhal que avivava recordações insepultas e dores que o tempo não conseguira cobrir, em cujo conjunto morriam nos lábios as palavras, nos olhos nasciam lágrimas e, na alma, a profunda sede de estar triste. Era uma ave? Era um homem? O Inca Sinchi Roca mandou apagarem as resinas aromáticas e se retirarem os seus guardas.
– O que soa? O que vibra? O que canta? – disse à sua esposa.
-É tão divina esta música, Pachacámac ( 2 ) – respondeu a Coya Chimpu (3) -, que não parece o canto de um homem nem o som de uma quena. Eu diria que é uma ave que vem chorar debaixo da lua. Nestas noites, das distantes montanhas profundas, chegam aves raras a povoar os jardins do palácio. Eu vi, ontem, uma avezinha, vermelha como uma ferida, a pousar-se nos milharais sagrados…
O nobre monarca se levantou. Pausadamente, olhou do terraço a Cidade Imperial. Abaixo, se estendia a povoação com seus templos e palácios. Luzes vermelhas marcavam o lugar das quatro praças e dos quatro caminhos. À frente, estava o Qoricancha (4), guardado por sacerdotes e guerreiros nobres e, dentro, dormia o divino tesouro da imagem do Sol diante da fila dupla dos corpos mumificados dos Imperadores. Distante, se distinguia a Intipampa (5) rodeada de palácios dos nobres e, junto à grande praça, defronte ao Amarucancha (6), o Templo das Escolhidas elevava os seus herméticos muros de pedra. À direita, rodeando a Praça de Cuntusuyu (7) se achavam as prisões, detrás do rio; e, antes deste, ao poente, as grandes canchas reais; ao lado oposto estavam os quartéis, hospedarias, espaços para as bestas idômitas, alguns palácios dos nobres e, mais além das muralhas, o vale fresco dormia debaixo do céu tranquilo desta noite azul, enquanto a Lua deixava cair os seus raios, misteriosamente, e uma brisa perfumada ascendia até ela da Terra silenciosa. Mudo, sentou-se o Inca no seu trono negro incrustado de ouro.
-Se fosse um homem que toca esta música, gostaria de tê-lo no palácio; se fosse uma ave, nos meus jardins… –
-Ordene-o, Pachacámac!…-
– Se fosse um homem seria fácil tê-lo ao meu serviço, mas se fosse uma ave, nada pode a minha vontade contra elas, que são oficiantes da pompa do Sol, meu pai… –
Logo, a Coya, fazendo um gesto suplicante, disse:
– Escuta Wiracocha (8)… –
O Inca pôs toda a sua atenção; seu rosto revelou curiosidade, admiração, depois dúvida e disse afinal, batendo palmas como um menino:
-Yma Samiyoc ! – Que coisa feliz! – É uma quena! Buscai e trazei este homem!-
Os grupos de seus servidores se esfumaram na penumbra lunar. A um gesto do Inca, outros acenderam novamente as resinas. O silêncio reinou de novo e se pode ouvir claramente o som de uma quena que avançava. Ouviram as vozes dos guardas, de posto em posto, e a Coya dizia:
– Se é um homem, há de ser Llaktan Nanay ( 9 ), mas ele se perdeu… Kyuchi, a minha servidora, me disse que Llaktan não está no reino… –
Dizem os pastores que o Pai Sol o arrebatou do seu Império para cantar nas suas mansões. As brancas mulheres do norte (10) dizem que Mama Quilla – a Mãe Lua -, o desterrou para que faça morrer os homens com as suas canções de dor. Os pescadores do Lago Sagrado dizem que este vaga de noite na Ilha Solitária; os lavradores, assim como as aves, invejosos da sua música, arrancaram os seus olhos e este caiu no rio; os guardas do Amarucancha contam que, ao ouvir a flauta, o seguiram serpentes e o devoraram; e os chaskis – os emissários reais-, asseguram ouvir pela noite, na profundeza da selva, as suas canções…
Ouvindo-se as vozes dos guardas, pouco a pouco apareceu um grupo de servidores nobres conduzindo um quéchua. Ajoelhando-se todos, com a pequena carga no ombro (11), o índio balbuciou, tremendo:
-Napaycuy, Yaya Wiracocha – Vos Saúdo, Pai Senhor –
-Levantem-no e deixem-no vir; retirai-vos ! – disse o Inca.
Ficou este com a Coya e o artista. A despedaçada túnica mal cobria as suas carnes pálidas; as sandálias rotas; o bastão lenhoso e tosco; a cabeleira despenteada e soberba, sustentada na fronte por uma cinta parecida uma coroa e, do pescoço, pendente de um longo colar, a flauta de cinco notas.
-Quem sois ? – perguntou o Inca.
-Sou, Wiracocha, do aillu ( 12 ) vizinho à Cidade Imperial… –
-Quem te ensinou a tocar flauta? Porque é tão triste a tua canção?-
-Ninguém me ensinou, Poderoso! Foi a dor… choro porque a minha amada se perdeu…
-O Inca, teu pai, quer lhe ser favorável. O Filho do Sol te dará o que quiseres. Peça. Desde hoje viverás no meu palácio e nos meus jardins, onde a tua alma esquecerá a dor e a sua flauta, a quena, alegrará o castelo. Tocarás a quena, ouves? Vou fazer-te feliz…
-Nunca poderei sê-lo, Wiracocha… Vós não podeis fazê-la retornar ao Palácio do Sol… Mas podeis, sim, fazer-me menos desgraçado… Vou pedir-vos algo…
-Fala!…
– Me deixarás sempre correr o s Império, passar pelas fronteiras, ir pelas comarcas, errar por todos os caminhos… Ordenarás que ninguém me impeça o passo e que ninguém, em Vosso reino, me impeça a tocar a quena… Faz-me crer que o mundo é meu e, sabendo que minha vida Vos pertence, faz-me crer, Wiracocha, que posso entregá-la à dor…
-Te darei servos, te enobrecerei, poderás aproximar-se do meu trono e caminhar com a minha comitiva. Terás trajes suaves de alpacas jovens e servos que realizem os teus desejos… Mas tocarás a quena…
-Meu Pai, meu Pai… deixai-me ir pelo mundo… Eu cantarei canções a Inti – o Sol -, em teu nome. Nas árvores mais grossas gravarei as tuas insígnias e, nas pedras mais visíveis, colocarei as tuas cores. Caçarei morcegos para, com a sua pele, tecer o Vosso Manto Imperial. Ensinarei aos sacerdotes, às freiras e aos papagaios a dizerem o Vosso nome e repetir os Vossos feitos, e eles os aspergirão na espessura da selva, onde não se ouve a voz dos Vossos mensageiros, ao amanhecer de cada dia, quando o Sol, Vosso pai, aparece… Mas deixai-me marchar… Se ficar no Vosso castelo minhas canções não Vos agradariam e minhas notas de dor não te chegariam à Vossa alma… Quereis que seja feliz e que a minha quena chore? Não me deis festas nem riquezas, nem servos, nem palácios. A dor não se faz. A dor é. Não se chora para divertir os outros… O penar está na luz da lua, na sombra das árvores frondosas, no silêncio da natureza… No cinzento das nuvens que se juntam e se tornam opacas no alto, quando chove, ali está a dor… No vento frio que sopra a tempestade, no retumbar do trovão, na chuva incessante e torrencial, na branca neve sagrada, no rio que rompe o leito e avermelha a água com a argila, no raio, ali vive a dor. Nada disso existe nos Vossos jardins, Pachacámac. A dor é imensa como o mar, orgulhosa como o côndor, multicor como o bosque. Vós não conheceis a dor… Deixai-me, portanto, sair, Wiracocha, Filho do Sol Poderoso. Não me arrebateis a única coisa que tenho na vida, não desencanteis a minha quena, não desfazeis a minha vida…
-És e não és do meu reino; Vais pelo mundo, divino errante, levais esta insígnia do Inca para que ninguém impeça a tua marcha. É uma pluma do meu diadema. Yma sumaq yaqui! …- Que coisa linda, a tristeza..-.
– Ayguayá… Ayguayá! – (13)
Disse e beijou o solo aos pés do monarca. Os soldados se voltaram para ele. Escoltado, desceu a escadaria do palácio. Voltaram ao seu posto os guardas. Alimentaram as resinas e, em pouco, debaixo da luz serena e silenciosa da lua, voltou a se ouvir o eco triste e desolado da quena, nos bosques longínquos.
– Yma Sumaq yaqui…Yma Sumaq yaqui! – disse o Inca à Coya.
– Ayguayá… -, soou ao longe a voz do artista.
A Lua se ocultou.
N.doT.:
1- Quena: Flauta andina de osso ou caniço. Talvez o mais suave dos instrumentos de sopro
2– Pachacámac: “Grande Criador”: Divindade pré-colombiana cultuada numa grande pirâmide ao sul de Lima.
3- Coya: A Imperatriz Inca. Chimpu: A cor rosa-cobre que, às vezes, aparece nas nuvens, ao entardecer.
4- Qoricancha: “Pátio de Ouro”. O grande templo incaico dedicado ao Sol, hoje Igreja de São Domingos, em Cusco.
5– Intipampa: “Planura do Sol”.
6- Amarucancha: “Pátio da Serpente”.
7- Cuntusuyu: “Província do Côndor”:
Uma das quatro províncias do Império Inca = “Tawantinsuyu” = “Quatro Províncias Andinas“.
8- Wiracocha: Lit. ,“Espuma do Mar” : Divindade pré-colombiana, depois significando “Senhor”;
um honorífico para homens ocidentalizados, na língua quêchua.
9 – Llaktan Nanay: Nome próprio significando: “A Sua Aldeia Sofre”.
10- “As brancas mulheres do norte” = as míticas guerreiras Amazonas.
11- “Pequena carga no ombro”: gesto da etiqueta incaica demonstrando submissão ao Inca.
12- Aillu: Unidade social primária na cultura incaica. Família extendida. Clã.
13- Ayguayá: expressão da refinada etiqueta quêchua: “Alcance, sirva-se, desfrute, apenas”.
A.W. (1888/1919) foi um prestigiado diplomata, escritor, jornalista, poeta e político peruano. Postumamente (1921), em Lima, publicou-se o seu “Los Hijos del Sol” – contos de temática incaica – onde aparece o texto acima, impregnado de lirismo e poesia. Episódios da curta vida atribulada do A.W. parecem se refletir em certos trechos deste conto.Assim como o seu personagem Laqtan Nanay, o autor foi um andarilho atormentado por uma paixão não resolvida na adolescencia.
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(Tradução e Notas por G. A. de Almeida, 2011-06-15 )