O AMOLADOR DE FACAS DO MALHADO

José esteve longe de ser homem comum. Porém, algumas características que observei quando criança, as quais muito o diferenciavam das pessoas que tramitavam no bairro do Malhado da década de 60, somente consegui analisá-las me. Lembro-me que andava sempre vestido de preto e com barba feita, o que conferia jovialidade àquele homem de aproximados cinqüenta e cinco anos. Embora trabalhasse sob o sol, sobre uma bicicleta, amolando facas, alicates, tesouras e afins, mostrava-se bem disposto e educado com todos. Ele aparecia quase todas as semanas. De antemão, fazia saber sua presença em face dos gritos matutinos – que acordavam as casas, quebrando a comum monotonia –, ou pelo som dos utensílios sendo afiados e, ainda que não fosse de muito sorriso, tornava as ruas uma festa.

Pouco se conhecia sobre ele. Geralmente, encostava a bicicleta – espetáculo à parte – à sombra de alguma árvore, enquanto trabalhava. Nós, crianças, sentávamos ao seu redor, extasiadas não apenas com as faíscas do esmeril, mas, principalmente, com a ‘sinfonia’, que José parecia reger tal um maestro, de mãos finas e gestos precisos. Não foi por acaso que o batizaram de ‘Paganini’, numa alusão ao imortal violinista italiano. Infelizmente, a alcunha parece ter criado vida e, tal acontecera com o músico de Gênova, esse amolador de facas também se tornaria vítima do mito, pagando caro por isso.

O Malhado na ocasião era bairro simples. Formado por trabalhadores humildes. Gente boa, dotada de fé religiosa e costumes interioranos. Entre os moradores, havia uma mulher, de nome Eulália, com quase setenta anos, ranzinza, que não varria o lixo da casa em direção à calçada, não pendurava a roupa no varal pelo lado avesso, odiava gatos pretos, não passava embaixo de escadas. Não perdia missa. Sempre de terço na mão, dizia ela que todas essas coisas eram ‘atraso de vida’. Supersticiosa, cismou com o amolador. Bastava ele entrar no bairro, ela dizia que estava para morrer alguém, pois o som produzido pela pedra de amolar era de ‘mau agouro’.

Por ser bairro antigo, havia ali muitos moradores de idade avançada. Com isso era compreensível que, em freqüência acima do normal, uns e outros ‘batessem as botas’, o que, por influência de Eulália, logo associavam à presença do amolador. A princípio isso soava como brincadeira. Principalmente entre a garotada, que só queria diversão. Mas, com o passar do tempo, pela repetição constante das palavras maldosas de Eulália, mais e mais pessoas foram associando as mortes à presença do amolador.

O mito ganhou vulto. Pessoas ficaram arredias ao ouvir o esmeril. Logo a freguesia diminuiu consideravelmente. Teve quem tentasse proibir a entrada dele no bairro. O burburinho não demorou a chegar aos ouvidos do amolador, pois a frase se tornara refrão das ruas: ‘– Lá vem Paganini! Hoje morre um!’. Em seu viver simplório, ignoravam laudo médico, perícia, estado de saúde ou idade. Cultos e novenas foram organizadas. Casas foram benzidas. Não tardou surgirem ‘causos’ sobre o tal homem. Todo e qualquer falecimento passou a ter um só diagnóstico popular.

Encabulado, José não vinha com a mesma freqüência de antes. Alternava horários, tentando fugir à perseguição dos mais radicais. Numa tarde de agosto, após um mês sem dar as caras, ‘Paganini’ apareceu. Como de costume, foi rodeado pela molecada que, não tardou, fora chamada pelos pais. Pensei ser hora de almoço ou porque muitos – como eu – estavam vindo da escola. Fui das poucas crianças a poder ficar ali… encantada com aquela ‘musica’, até ser bruscamente interrompida por gritos saídos da rua, às minhas costas.

Virei em tempo de ver Antônio, marido de Eulália, faca na mão, proferindo ameaças ao homem que, com medo, nem assimilava o absurdo. Junto a Antônio, outros furiosos reforçavam o coro. Exigiam que se retirasse do bairro prometendo não voltar. Por mais que explicasse que não havia relação entre ele e as mortes, todos pareciam surdos e mal o deixavam falar. Não havia quem o socorresse. Na confusão, derrubaram a bicicleta, quebrando-a com chutes, bem como ao esmeril. As ferramentas foram espalhadas. Quando a PM chegou, difícil foi conter o povo. Os policiais sequer entendiam o que se passava. Levaram-no dali, pois já se falava em linchamento.

José nunca mais apareceu. Não sei o que foi feito dele. Dizem, alguns, que faleceu. Desde aquele dia muito tempo se passou. O bairro evoluiu. É outra mentalidade que predomina. Muitos desconhecem o caso. Ainda morre muita gente. Mas essa nunca foi a referência a me fazer lembrar do amolador. Penso nele quando ouço alguém dizer: ‘– Não varra o lixo pra calçada!’, ou se minha filha afina o violão. Há poucos dias, passando em frente à loja de discos, ouvi uns acordes suaves e agudos que elevaram meu espírito. Entrei. Quis saber quem era. Muito gentil, a moça do balcão disse: ‘– Essa é a sonata ‘Amorosa de Scena’, de Nicolo Paganini’. Saí às pressas. Não levei o disco. Não falei nada, nem poderia. Sem entender a razão, eu estava com os olhos cheios d’água.

 Colaboração de Luiz Castro

Bacharel Administração de Empresa