A formação de novos profissionais da Psicologia na Bahia é o tema de um artigo publicado na Revista Educação, do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Realizado pela equipe do Observatório de Formação em Psicologia (ObPsi), liderada pelos professores Caio Rudá e Gabriela Andrade da Silva, o estudo aborda o panorama de interiorização de cursos de Psicologia em instituições privadas.

Para chegar aos apontamentos no artigo Formação do psicólogo na Bahia: uma análise a partir do Enade 2015, os pesquisadores partiram dos resultados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), mecanismo do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Sinaes) para aferir a qualidade da formação. Mais especificamente, o resultado dos participantes desses cursos em instituições na Bahia no exame de 2015 compõe o recorte em estudo. A análise quantitativa levou em conta as variáveis “organização acadêmica”, “categoria administrativa” e “indicadores do desempenho dos estudantes”.

Os pesquisadores concluíram que não chega a haver diferença significativa de desempenho dos alunos dos cursos no interior e os da capital, com os dados indicando similaridade de qualidade entre o mediano e o fraco, dentro da média nacional, e significativo desempenho superior de cursos de universidades públicas na comparação com faculdades e centros universitários privados. Apesar de não ser possível identificar se a diferença de desempenho se deve à organização acadêmica ou à categoria administrativa, os autores concluíram que o predomínio do setor privado no interior leva a um cenário de precarização do ensino de Psicologia no estado, por não haver a garantia da qualidade da formação e, consequentemente, pelo impacto negativo na performance profissional.

A professora Gabriela e o professor Caio expandem a análise do cenário na entrevista a seguir:

O artigo apresenta uma crítica ao modelo de cálculo de notas do Enade, ao mesmo tempo em que reconhece a importância do Sinaes como mecanismo de avaliação. Como se poderia aprimorar esse modelo para reduzir ou retirar distorções e manter as funções de avaliação formativa e a supervisão e fiscalização?
Caio: Atualmente, no Brasil, a avaliação institucional (AI) está relacionada à melhoria da qualidade da educação superior; à orientação da expansão de sua oferta; ao aumento permanente da sua eficácia institucional e efetividade acadêmica e social; e ao aprofundamento dos compromissos e responsabilidades sociais das instituições de educação superior, por meio da valorização de sua missão pública, da promoção dos valores democráticos, do respeito diferença e à diversidade, da afirmação da autonomia e da identidade institucional. Esta pergunta, portanto, expõe o desafio central que o Inep, órgão que coordena as políticas de AI no país, tem à sua frente, que é atuar para a garantia da qualidade tanto em nível micro do processo de ensino, para que ele promova uma aprendizagem significativa nos estudantes, quanto em nível macro, cuidando do sistema de ensino superior como um todo, evitando fraudes e fortalecendo o acompanhamento das instituições de ensino.
Nesse sentido, é preciso ter um olhar ampliado, manter o foco em políticas públicas, fortalecer a legislação, dispor de ferramentas apuradas de mensuração de resultados educacionais em larga escala e investir em produção de dados, de conhecimento, de modo a dar conta do aspecto macro, afinal, educação não se faz apenas no feeling, mas também com acompanhamento e rigor. E claro, tudo isso tem que estar atrelado à consideração fundamental da educação como formação, como emancipação, como desenvolvimento. As relações humanas são parte fundamental do processo e jamais devem ser colocadas de lado. A capacitação pedagógica docente tem que ir no sentido de não reduzir educação a uma técnica, fortalecendo o aspecto humano, ético e estético também do processo formativo.

 

Gabriela: Entre os meses de setembro e dezembro de 2019, iniciei uma pesquisa em estágio pós-doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade (PPGEISU), na Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob supervisão do professor Jorge Luiz Lordelo de Salles Ribeiro, a respeito dos rankings acadêmicos e como eles avaliam e discutem o conceito de qualidade no ensino superior. Para isso, fiz uma busca exaustiva das leis que regem a educação superior e do que elas consideram como critério de qualidade para uma universidade. Uma das descobertas que destaco é que não temos critérios do que consideramos uma boa qualidade do ensino. Podemos medir qualidade da pesquisa pelo número de publicações, qualidade da extensão pelo número de ações e de pessoas atendidas por elas, mas como medimos qualidade da formação que a universidade proporciona?
A pesquisa permanece em andamento e uma das propostas é criar e propor indicadores mais claros da qualidade da formação, alinhados com o que se espera de uma boa universidade pública. Até o momento, o que concluímos é que a boa formação passa pela qualidade das ações
de ensino, pesquisa e extensão de forma integrada, que devem estar alinhadas com o compromisso social da universidade. Desde a década de 2000, vimos um movimento de ressaltar a importância das políticas afirmativas e da assistência estudantil nas universidades públicas, sobretudo nas federais. Tenho elementos para dizer que essas ações deixaram de ser consideradas apenas como atividades-meio e se tornaram mais uma finalidade das universidades. Mais recentemente, temos visto uma distorção do processo de avaliação das universidades, com uma supervalorização de rankings acadêmicos, inclusive pelo MEC. No entanto, deveríamos investir em definir o que consideramos uma boa formação, em termos de processo e de resultado, para podermos criar instrumentos que reflitam esse conceito de qualidade.

 

A grande maioria dos cursos baianos de Psicologia ficou nas faixas 2 e 3, fraco e mediano, e nessas faixas todas são instituições privadas, algumas delas bastante recentes na época do exame, e parte considerável está no interior baiano. E permanecem queixas de falta de qualidade do ensino privado nessa área. Quando se fala de problemas de formação do psicólogo, de que tipo de efeitos se está falando?

 

Caio: A formação do psicólogo é permeada de questões sensíveis, que acabam configurando verdadeiros problemas quando não endereçadas da maneira adequada. Mas aqui iremos nos limitar aos problemas decorrentes do baixo desempenho no Enade, que, numa primeira análise, apontam para um processo de ensino-aprendizagem deficitário, o que equivale a dizer que se ensina mal e se aprende pouco, num contexto de precariedade institucional. Nos últimos 15 anos houve um incremento considerável do número de cursos e matrículas em Psicologia. Formaram-se e continuam a ser formados psicólogos sem nenhum planejamento das necessidades sociais desse tipo de formação ou da capacidade de o mercado de absorver todo o contingente de psicólogos. Tal crescimento obedeceu apenas aos fins econômicos das empresas educacionais. E pior ainda, os resultados do Enade sempre indicaram um desempenho baixo a mediano, sem que nenhuma política de gestão da qualidade fosse implementada.
Com isso, temos hoje um número grande de psicólogos formados que não desenvolveram as competências necessárias para uma atuação qualificada durante a graduação e tentam compensar o déficit durante a própria experiência no processo de trabalho ou via cursos de especialização de qualidade também duvidosa (vale lembrar que as exigências para a oferta de cursos de pós-graduação lato sensu, do tipo especialização são muito menores que para a oferta de cursos de graduação). Além do mais, esses mesmos psicólogos serão submetidos a condições de trabalho normalmente indignas, com baixa remuneração e carga horária extenuante, o que só precariza ainda mais sua atuação já deficitária. Nesse caminho até a qualificação, diversos usuários e pacientes terão sido alcançados pelas práticas desses psicólogos. Até onde sabemos não existe nenhum estudo a respeito do impacto de más práticas psicológicas, de modo que só podemos especular desfechos nada agradáveis como a agudização do sofrimento psíquico dos sujeitos em atendimento, a orientação inadequada e invasiva quanto a questões sexuais, interpessoais e existenciais, a manutenção das desigualdades e exclusão sociais, a naturalização de práticas de anulação e violação de direitos, entre outras coisas. Assim, são fundamentais tanto a execução de estudos sistemáticos a respeito dessas más práticas psicológicas quanto a formulação de políticas para a qualificação da formação do psicólogo no país.

 

Gabriela: Embora não tenhamos dados empíricos, percebemos uma precarização em vários sentidos. O trabalho docente é uma delas: são cada vez mais comuns, sobretudo nas instituições particulares, contratos de trabalho como horista ou com vínculo parcial. Esse docente não terá tempo suficiente para preparar suas aulas, muitas vezes se tornando um “repetidor” de materiais prontos, em vez de trazer reflexões mais aprofundadas. Mais difícil ainda será esse docente ter tempo de fazer pesquisa e extensão, que são fundamentais para uma boa formação.
Do ponto de vista do corpo discente, muitos estudantes não têm tempo para ler qualquer texto, por serem trabalhadores; ou não conseguem ler e interpretar os textos, porque não tiveram um bom ensino de base. De forma geral, nós, docentes, ainda não sabemos lidar com esses públicos (que há pouco mais de uma década passou a adentrar o ensino superior) em termos de criar novas estratégias de ensino, que incluam esses estudantes de forma efetiva, permitindo que eles ingressem no mundo da ciência. Em vez disso, tendemos a afrouxar o nível de exigência, procurando reconhecer as limitações. Isso acontece não apenas nas avaliações, mas no próprio formato das aulas e materiais didáticos. Por exemplo, os textos originais de teóricos conhecidos, ou mesmo de artigos científicos mais recentes, têm sido substituídos por textos didáticos prontos e por manuais e protocolos de atuação. Esses materiais têm seu valor, mas se o discente nunca tiver contato com os textos originais, mais complexos, não terá a chance de se aprofundar nos conteúdos e na linguagem dos autores que criaram as bases da ciência da Psicologia. É uma falsa inclusão, em minha opinião, mas também não sei como seria o formato ideal das atividades de ensino-aprendizagem nesse novo contexto que vivenciamos.

 

A pesquisa do OBPsi também mostrou que as notas na prova de Formação Geral foram mais altas que na prova de Conhecimentos Específicos, o que é um indício de problemas justamente na formação profissional específica do psicólogo. Que problemas decorrem dessa carência?
Caio: Talvez o principal problema se expresse numa atuação profissional sem embasamento teórico, orientada por valores pessoais, político-ideológicos e/ou religiosos. Obviamente, essas são dimensões da subjetividade humana. Tanto psicólogo quanto os sujeitos com quem ele trabalha são atravessados por essas questões. Questões aliás que são sempre recorrentes no contexto terapêutico, trazidas por usuários e clientes, e que a todo o momento convocam o psicólogo a repensar sua condição humana e atentar para o modo como sua própria subjetividade pode vir a interferir no trabalho que desenvolve.
Logo, é evidente que o psicólogo não é um sujeito construído num vácuo social. É um sujeito humano, político, que tem seus valores e posicionamentos. No entanto, isso não deve ser entendido como carta branca para agir conforme tais valores e posições políticas, desconsiderando todo o conhecimento científico produzido para lidar com o adoecimento psíquico, com o processo de saúde, com a dimensão psicológica do trabalho, entre outras possibilidades de intervenção psicológica. Infelizmente, o que os resultados da pesquisa nos permite pensar é que os psicólogos podem estar deixando de lado a importância do conhecimento especializado, satisfazendo-se com outras posições teórico-técnicas comuns a outras profissões ou mesmo completamente alheias a qualquer atividade profissional.
Curiosamente, esse fenômeno parece ter uma dupla e antagônica expressão. Por um lado vemos o surgimento de posicionamentos conservadores, às vezes vinculados a movimentos religiosos e reacionários que, entre outros absurdos, propõem a possibilidade de reversão da orientação sexual: a famigerada “cura gay”, que nada mais é que uma total expressão de obscurantismo e anticientificismo. Por outro lado, há uma deturpação do pensamento científico progressista, antipositivista, que acaba caindo num certo relativismo que flerta com o desprezo à ciência, deixando os psicólogos confortáveis a atuar com base apenas no bom senso e no desejo de mudar o mundo. Ambas as atitudes são reprováveis. A verdadeira atuação psicológica tem que partir da defesa dos direitos humanos para executar a intervenção qualificada com base em conhecimento científico.

 

Gabriela: As principais lacunas que observamos na formação, até mesmo partindo dos resultados do Enade, são quanto aos eixos (previstos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de graduação em psicologia) de Fundamentos Epistemológicos e Históricos (FEH) e de Fundamentos Teórico-Metodológicos (FTM). O primeiro eixo nos permite entender de onde surgiu a psicologia e desenvolver um raciocínio crítico sobre os contextos políticos e sociais nos quais as teorias foram criadas, o que nos torna mais aptos a compreender nossos papéis e também nossos limites enquanto profissionais. O segundo eixo é o que define as teorias e os métodos nos quais a nossa prática se baseia. Se a formação está deficitária nesses dois eixos, estamos com lacunas justamente nas bases constituintes de nossa profissão.
Acredito que tivemos um avanço considerável, nos últimos anos, em incluir discussões sobre direitos humanos e políticas públicas na Psicologia, inclusive na formação profissional. Mas eu me pergunto se estaríamos deixando para trás as nossas raízes, os fundamentos da psicologia enquanto ciência e profissão. Imagino (e percebo no contato com novos profissionais) que temos atualmente uma geração de psicólogos que sabem reproduzir protocolos e técnicas, mas que não refletem criticamente sobre seu trabalho e, por isso, podem reproduzir práticas opressoras; ao mesmo tempo, não são capazes de criar, de inovar, de adequar-se às novas necessidades que a sociedade continuamente nos impõe. Concordando com Caio, acredito que o resultado tem sido intervenções muitas vezes inefetivas, ou mesmo que agravam os sofrimentos psíquicos de pessoas e grupos onde atuamos.

 

Que formas de mitigar essa dificuldade podem ser pensadas, tendo em vista os estudantes formados nessas instituições e os futuros egressos?
Caio: Acredito que é necessário em primeiro lugar o fortalecimento da identidade da Psicologia. Porém, essa não é uma solução fácil. A própria ideia de identidade de uma área marcada por diversidade é um tanto quanto paradoxal. Existem psicólogos que atuam na saúde, na educação, na assistência social, no contexto organizacional, etc.. E mesmo dentro desses espaços de atuação, há diversas linhas teóricas, várias maneiras de entender o fenômeno humano. Muitas vezes parecem existir mais dissensos que aproximações na Psicologia. E talvez tenhamos nos acostumado mais a olhar para as diferenças do que para as semelhanças, em vez de encararmos a diversidade como saudável e potencializadora. Assim, nos acostumamos a sustentar uma postura que é mais do que uma crítica epistemológica, ou seja, que diz respeito às bases do conhecimento científico, mas uma verdadeira aversão à diferença. Daí que surgem expressões como “odeio a psicanálise porque não é científica”, “detesto o behaviorismo porque trata as pessoas como robôs”, “não gosto do humanismo porque é muito ingênuo”, e outras mais de sentido similar… É como se a crítica tivesse como fundamento os valores e preferências individuais de quem a pronuncia, sem partir de uma verdadeira compreensão epistemológica acerca das bases de cada uma dessas escolas de pensamento. É como se adotar um referencial teórico-metodológico em Psicologia implicasse uma defesa incondicional desse referencial, passando pela crítica também incondicional a tudo que é diferente.
Claro que não defendemos uma tolerância plena ou ingênua, naturalizando práticas sem qualquer fundamento lógico ou mesmo práticas nocivas que contribuem para a manutenção de desigualdades, ou que operem processos de exclusão social. Defendemos, na realidade, a importância do conhecimento histórico e epistemológico que permita ao psicólogo fazer um julgamento apropriado da extensão e limitações de cada abordagem, teoria ou prática na Psicologia, de modo que a crítica a X, Y ou Z tenha validade e se dê pelo reconhecimento da falta de cientificidade ou faltas éticas do alvo da crítica. Essa tem sido, aliás, uma hipótese de trabalho de uma de nossas pesquisas atuais, que busca exatamente avaliar a qualidade do ensino dos fundamentos histórico-epistemológicos nos cursos de graduação: sem esse tipo de conhecimento histórico fica difícil se tornar um bom psicólogo. Assim, com essa noção consolidada do que vem a ser uma prática psicológica, do que a define, podemos estabelecer limites para o que é eticamente aceitável ou não. E aí a nossa briga é com o que de fato não comunga dos nossos princípios de defesa dos direitos humanos, do combate à discriminação, de valorização da subjetividade e da diversidade; e não com o colega que mantém uma prática que, embora válida, ética e eficaz, tem bases epistemológicas distintas da minha.

 

Gabriela: Acredito que é o momento de mudar o foco das políticas públicas, deixando de ter como meta a expansão pura e simples das vagas de ensino superior e voltando as energias para a melhoria da qualidade dos cursos. Para isso, é preciso que os cursos sejam construídos com base em fundamentos teóricos e em resultados de pesquisas empíricas que possam orientar o que é mais efetivo para o aprendizado. Não podemos construir matrizes curriculares, planos de curso e de aula baseados em achismos.
Além disso, docentes deveriam passar por uma etapa de formação pedagógica, já que usualmente saímos da posição de estudantes para a posição de docentes sem qualquer formação ou orientação para exercer essa função. Precisam de contratos de trabalho com maior estabilidade, que prevejam tempo para atuação no planejamento das atividades didáticas, pesquisa, extensão, atualização profissional. Precisam de formação continuada, para a constante revisão de suas metodologias. Para os profissionais que já estão formados, é preciso oferecer ações de educação permanente qualificadas, e para isso também precisamos de docentes com boa qualificação.
Por fim, acredito que precisamos nos debruçar sobre as formas de incluir efetivamente estudantes trabalhadores e que tiveram uma formação mais precária na educação básica. Não podemos mais fingir que esse problema não existe, “maquiando”, por meio do rebaixamento do nível de exigência dos cursos e de suas avaliações, os resultados quantitativos referentes a notas e número de diplomados.

 


Heleno Rocha Nazário
Jornalista – Mestre em Comunicação Social (PPGCOM/PUCRS)