por Guilherme Albagli de Almeida

MOÇA BELA FOGÃO E PANELA

Um Drama Histórico

2014

Na Década de Ouro da cacauicultura sul-baiana, 1925/1935,
chegaram a Ilhéus as maiores levas de migrantes de várias partes
do mundo, principalmente de Sergipe, Ceará, Recôncavo Baiano
e Oriente Médio.

APRESENTAÇÃO

Na segunda metade da Idade Média, nas
feiras dos pequenos burgos que nasciam em
torno dos castelos feudais percorriam, com
seus alaúdes, os menestréis – poetas
populares que cantavam poesias musicadas
com temas sobre o amor, o escárnio e a
louvação de poderosos que lhes pagavam
para terem os seus nomes levados a terras
distantes.

A imprensa com tipos móveis já fora adotada
na Europa e, muitas vezes, estes menestréis
imprimiam os seus textos em folhetos de
pequenas dimensões, muitas vezes ilustrados
por eles mesmos com xilogravuras adornando
a capa. Este gênero literário popular
permaneceu até hoje vivo, em certas regiões,
como no Nordeste Brasileiro.

Casos diversos, misturando realidade e
fantasia apareciam e ainda aparecem nesta
literatura que, por ser muitas vezes exposta
em cordéis amarrados entre dois suportes
laterais, recebeu a denominação de
“Literatura de Cordel”.

Se, em Pernambuco, famosos cordelistas se
estabeleceram, cantando as belezas ou as
bizarrices do lugar, como o “Mercado de São
José”, de Rafael Azevedo – talvez uma das
obras-primas deste gênero literário -, Itabuna
teve o seu poeta Minervino, vivo até poucos
anos, que vendia sua literatura em feiras e em
romarias, como em Bom Jesus da Lapa.
Sendo este um trabalho dirigido ao povo, de
baixa renda, os folhetos de cordel deveriam
ser acessíveis em preço. Os seus autores não
apenas compunham as poesias mas,
também, as imprimiam e talhavam na
madeira branda, com pequenos formões, as
gravuras que, depois de impressas,
adornavam as edições tão estimadas pelo
povo que nelas encontrava, na sua linguagem
simples, pouco rebuscada, os seus temas de
interesse. Não eram incomuns livretos intitulados “A Filha que Bateu na Mãe e Virou
Lobisomem” ou “A Porca que Pariu Leitões
com Cara de Gente na Ponta do Ramo”…

Trazemos, aqui o folheto “Moça Bela, Fogão e
Panela”, contando a tristemente verdadeira
história de uma séria senhora sergipana que
inspirou Jorge Amado na criação do seu
personagem lascivo “Gabriela Cravo e
Canela”; embora redigido na linguagem
simples da poesia popular, o texto busca ser
cientificamente histórico, baseado em relatos
da Sra. Nair Pessoa Amorim da Silveira, que a
conheceu de perto, do Sr. Jocelin Macêdo,
filho de uma personagem da Ilhéus dos anos
de 1920, a famosa Nanã, dona de um
conhecido cabaré, e do próprio autor dos
versos, neto de uma vizinha da citada
Senhora, que a conheceu e presenciou
alguns dos fatos aqui relatados. Se, nestes
versos faltarem uma refinada técnica poética
– ritmo, métrica ou riqueza de rimas -, ficará
registrado um relato verídico e digno de ser
lembrado pela História da Literatura
Regional.

I

Contarei em breve tempo
Uma história bem verdadeira
De uma moça muito bela
Que sofreu a vida inteira

Seus pais, pobres sergipanos
Agricultores sem terra
Viviam num povoado
Por detrás de uma serra

Certamente, passavam aperto
Conheciam a dureza da vida
Trabalhavam sem descanso
Temendo a causa perdida

Quase todos, daquele lugar
Só pensavam em fugir
Embarcar num pau-de-arara
E, direto, ao Sul seguir

Aqueles com mais condição
Dispondo de mais dinheiro
Viajavam de navio
Ali chegando primeiro

Muitos deles, contudo
Sem ter nada para vender
Com bornal e sandália de couro
Vinham a pé, a Ilhéus conhecer

Água bastante, não tinham
Todo mundo muito sujo
Com cabelo empoeirado
Tomar banho era um luxo

Passavam por uma feira
Que chamavam de Santana
Viam gente elegante
Numa grande cidade bacana

Passavam por Gandú e Itapira
Cruzavam Pirangí e Tabocas
Primavera, Salobrinho e o Banco
Um mundão de belas roças

Cruzavam uma ponte velha
Nos Ilhéus, chegavam, então
Com aquele rio trespassado
Ali chamado Fundão

Chegavam ao alto da Pimenta
Hoje bairro da Conquista
Era uma roça de cacau
Dotada de bela vista

Ali embaixo, finalmente
Estava a Ilhéus procurada
Onde corria muito dinheiro
Aos ricos faltando nada

Desciam outra ladeira
Vendo, em baixo, um belo porto
Ancorados, navios de ferro
Para todos um mundo novo

Arranchados na feira, apareciam
Contratantes, a cada momento
Levavam os mais jovens às roças
Para buscarem o seu sustento

Os grupos de migrantes, aos poucos
Iam, em número, diminuindo
Só restavam os mais fracos
Todos os fortes sumindo

II

A Moça Bela, de Sergipe chegada
Na Cidade de Ilhéus, virou uma flor
Cintilava a sua beleza
Causando muito clamor

Por onde passava a olhavam
Mas mantinham sempre o respeito
As feiosas a viam, contudo
Sempre cheias de despeito

Ao caminhar, os homens na rua
A olhavam com o coração palpitoso
Mas ela não dava trela
Pois só queria um esposo

Pequena em altura, pele morena
Queixinho marcado num rosto redondo
Maçãs do rosto salientes
Emoldurando um sorriso tristonho

Mesmo triste, Moça Bela era linda
Cabocla de olhar verde-oliva
Cabelo castanho e bem fino
Verdadeira Princesa-Nativa

O Prefeito de Ilhéus, um velho Doutor
Da Chapada Diamantina chegado
Casado com uma Dama do Norte
Êta homem prestigiado

No palacete do Prefeito, logo chegando
A Moça Bela foi trabalhar
Empregou-se como ajudante
Na cozinha daquele lar

Todos, ali, gente decente
Em bela praça, alojados
Decoração com muito estilo
Móveis finos e brocados
Nesta casa-grande viviam
Filhos, noras, netos e criados
Muita gente cabia nela
Tinham muitos os empregados

Em 1932, na cidade se abriu
Um cine-teatro pomposo
Que a Nora do Prefeito ia sempre
Deixando em casa, sozinho, o esposo

Toda tarde, depois das duas
Com duas sobrinhas, a nora partia
Ao cinema majestoso
E a muitos filmes assistia

E o maridão? ficava no quarto
No andar de cima, dormitando
Mas, logo, descia sonâmbulo
À Bela Moça buscando

Certo dia, o cine-teatro
Sua projetora de filmes quebrou
Voltaram todos à casa mais cedo
E a Nora do Prefeito encontrou
A Moça Bela e o seu marido
Dormindo, como pombinhos
Sobre lençóis de cambraia branca
Pareciam dois anjinhos

Gritou, esperneou, esbravejou
Fez o normal imenso barulho
Era formosa e não queria
Macular o seu orgulho

Tinha roupas caras, chapéus e luvas
Perfumes e cremes de muito valor
Jóias, sedas, atílios, écharpes
E a Bela?, – o dom do amor –

O Marido vivia encantado
Com aquela flor-brejeira
Que, sem perfumes, cheirava à rosa
Ao jasmim e à laranjeira

Saiu, então, a jovem da casa
E, logo ali perto, se ocupou
Vendendo mingau no Porto Velho
Onde encontrou seu grande amor

Em todo tipo de comida
Grande mestra era a Bela
Conquistou seu marido temperando
O seu mingau com cravo e canela

Um sírio solteiro tomou seu mingau
E, ao seu bar, logo a levou
Tratou-a com imenso carinho
E nunca mais a deixou

Pelo dia, fogão e panelas
Numa escura cozinha apertada
Pela noite, o amor exclusivo
Que só o marido desfrutava

Em 1958 um escritor criativo
Naquela terra, nascido e criado
Remontou sua história de vida
E, com isso, lucrou um bocado

Pintou-a como mulher leviana
Mulher de todos, de má vida
Fugiu ele da verdade
De uma mulher fiel e sofrida

Em poucos anos, ela engordou
Muitos quilos, acima da média
Sua pressão arterial se elevou
Correndo à Dra. Rosa, a Médica

Pouco depois, apareceu
No seu bar, do Sul, um grupo
Jornalistas de uma revista
Gente maldosa, sem escrúpulo

Fizeram dela fotos grosseiras
Sem ela nada poder perceber
Chegando as revistas, às bancas
Ela esteve quase a morrer

Pois, além das fotos tiradas
O texto era uma só ofensiva
A feriram, caluniando
Viver uma vida permissiva

Marido e filhos então reagiram
Prometendo aquela corja matar
Se caíssem na asneira
De, algum dia, aos Ilhéus retornar

E o nosso grande escritor criativo
Também de morte, foi jurado
Demorando de ali voltar
Com medo de ser empalado

Na tarde em que aquela revista
Na Terra de Ilhéus se achegou
Foi Rosa Albagli, sua Vizinha
Que a Bela Senhora consolou

A Vizinha da Bela também já chorara
No exato lugar, por outras fotos
De uma pilha de inocentes, sem vida
Alguns dos Seis Milhões de Mortos

A Vizinha abraçou forte a amiga
Que, soluçando, mal podia falar
Tiraram de perto as crianças
Para a cena não observar

Um Bullying pesado sofreu Moça Bela
Que em português é Assédio Moral
A Grande Mídia transformou sua vida
Num imenso inferno astral

Moça Bela, depois dos sessenta
Sua alma a Deus entregou
Sofreu muito neste mundo
Finalmente, descansou.

III

Este caso acima exposto
É História Verídica, um fato consumado
Ou vivido pelo autor rimas
Ou, então, a ele contado
Por uma das Sobrinhas desta História
Que, toda tarde, ao cinema ia
Foi ela quem viu o fuzuê
Encenado pela tia

Já velhinha, esta Sobrinha sofria
Com injustiça que fizeram à Bela
Com a sua cruz carregada, dizia
Sua beleza não mais era aquela
Outros dados aqui expostos
que aqui transcrevo, sem medo
me contaram o filho de Nanã
O nobre Jocelin Macedo.