UM PAINEL ALÉM DO TEMPO: O ESCONDIDO POR TRÁS DO CACAU
Ruy Póvoas
Quando Ângelo Calmon de Sá foi presidente do Banco Econômico, encomendou ao artista plástico Genaro de Carvalho um painel para ornamentar a fachada externa do prédio Comendador Firmino Alves, onde o banco funcionava. E no ano de 1953, a Osirarte, firma de São Paulo, entregava a encomenda. O painel composto de azulejos foi fixado no prédio, justamente na esquina da Praça Adami com a Av. J. J. Seabra, atual Cinquentenário.
Ignorado pelos itabunenses, escondido por 30 anos por uma banca de revista, o painel “A civilização do cacau” sofreu toda a sorte de vilipêndios. Sobre ele eram pregados folhetos de propaganda comercial, retratos de candidatos a cargos eletivos, avisos de cartomantes. Os maus tratos quebraram vários azulejos, o descaso do poder público inutilizou outros tantos, a indiferença grapiuna fez inúmeros deles rachar.
Os transeuntes passavam e não viam. As escolas ignoravam. Os camelôs faziam dele o pano de fundo sobre o qual suas quinquilharias eram expostas. O Banco Econômico não mais existe, Ângelo Calmon de Sá e Genaro de Carvalho se foram, mas “A civilização do cacau” desafiou o tempo durante 58 anos. Sua permanência deve-se muito mais à alta qualidade do material com que foi confeccionado do que ao zelo municipal.
Cerca de uma dúzia de prefeitos passou por Itabuna desde que o painel foi inaugurado. Secretários de Educação, Diretores de Escolas, professores, pessoas ricas, gente formada, tudo isso desfilou com fartura durante esses 58 anos.
Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe: todos sabem disso. E na ordem natural das coisas e na vida dos homens, tudo tem seu dia. Prova disso é a atitude do Dr. Cyro de Mattos, contista laureado, poeta de primeira linha, que dirige a Fundação Itabunense de Cultura ̶ FICC. Entre outras conquistas e realizações deste escritor e poeta refinado está a glória de ter recuperado o painel de Genaro de Carvalho.
Por que tal recuperação se constitui uma glória? Inúmeras são as razões. Algumas delas, no entanto, não podem deixar de ser apontadas. “A civilização do cacau” é obra única da lavra de seu criador. Poucas pessoas, fora de nossa região sabem da existência dele.
É, porém, pelo imaginário da cultura do cacau retratado no painel, que justifica sua restauração. Numa área com cerca de 30 metros quadrados, Genaro abarca o espírito que forjou a riqueza cacaueira. Percebe-se um fundo branco sobre o qual inúmeras gradações de ocre debuxam a saga do cacau. Numa diagonal imaginária, que une o mais baixo ponto à direita e o mais alto à esquerda, vemos, respectivamente, sacas de cacau para “pronta entrega”, como se costumava dizer, e navios e embarcações para o escoamento da safra. Permeando esses dois pontos, uma série de motivos típicos e exclusivos da flora e da fauna regionais: algumas caças, um cachorro, ramagens, cacaueiros e figuras humanas. Catorze pessoas são retratadas, sendo a maioria homens musculosos, de corpos viris. Apenas duas mulheres: uma, embora trajando roupas femininas, tem o corpo masculinizado; a outra… Bem, a outra aparece em trajes que expõem seus dotes femininos e a caracterizam como objeto de desejo dos homens. A primeira é a mulher que, para sobreviver naquela época, enfrentava o batente igual aos homens. Ela é rude, musculosa e não se vê sua fisionomia. Ela está em postura masculina, sustentada por suas pernas carnudas, bem abertas. A segunda está desconectada dos afazeres em que as demais figuras estão ocupadas. Suas pernas bem torneadas, seu traje de quem se dispõe a se divertir em vez de trabalhar, na verdade, configuram aquela outra mulher que terminava por carregar o lucro que os homens auferiam no pesado trabalho da lavoura do cacau. Todos usam um mesmo tipo de chapéu: única proteção para suas cabeças expostas às inclemências do céu. Os homens todos são muito carnudos, musculosos e suas feições são de negros, mulatos ou caboclos. Todos estão trabalhando no pesado: colhendo ou quebrando os frutos, pisoteando ou ensacando as sementes, carregando pesadas sacas de quatro arrobas na cabeça.
À exceção da mulher desconectada, não se vê outra pessoa branca. Também não se vê pessoa alguma gozando a fortuna resultante do trabalho retratado. Os donos da riqueza estão ausentes da luta, do trabalho duro, do derramamento de suor. Há uma mensagem bíblica às avessas, oculta: comerás o pão com o suor do rosto do outro. Por isso mesmo eles não tomam parte na composição do painel.
Os animais retratados estão em oposição aos humanos: os animais gozam a plenitude da liberdade; os humanos estão presos por correntes invisíveis ao trabalho pesado. E todos se sustentam numa base formada por frutos do cacaueiro, esparramados pelo chão. É a riqueza e a fartura que marcaram uma época, uma sociedade, uma cultura. Isso, no entanto, se concentrava em outras mãos que não eram as dos trabalhadores. Por isso mesmo, quando a riqueza do cacau ruiu, o povo em geral não guardou o menor sentimento por isso.
O painel não retrata construção alguma. Por isso mesmo uma terra um tanto selvagem compõe o pano de fundo que se funde com os demais planos: tudo está fundido na mesma atmosfera que hipnotiza: o mundo do cacau. As embarcações que aparecem no alto à direita é o limite do homem do cacau. De lá em diante, outra classe sócio-econômica entraria em cena. Essa outra classe, no entanto, não aparece. Está escondida no branco que faz o pano de fundo do painel. Do que se vê, tudo é ocre, cor de barro. É o chão do cacau que mergulhava a todos num atavismo sem par. Os ricos geravam os ricos; os pobres geravam os pobres, embora todos fossem feitos do mesmo barro que gerava o cacau. Ocre são as sementes do cacau após seu preparo para exportação. Ocre é o painel de Genaro que tão bem soube captar o imaginário de nossa sociedade, dos que governaram esta nação grapiuna desde a sua formação.
É verdade que Cyro de Mattos não faria a recuperação do painel sozinho. Conforme ele mesmo declarou reconhecidamente, no ato de entrega do painel recuperado à comunidade, o IPAC, através de José Frederico Morais, foi parceiro na recuperação, durante as três primeiras etapas. Carlos Leahy muito contribuiu, tomando atitudes corajosas para remover o amontoado de vendedores, cuja exposição de mercadorias escondia o painel. Os vendedores se utilizavam dele, pregando cabides, amarrando cordas, colando bugigangas. O Prefeito José Nilton Azevedo também recebeu sua parcela de reconhecimento por parte de Cyro, pela pronta acolhida e total apoio à idéia de recuperação do painel.
Há, no entanto, um reconhecimento maior dirigido a Richard Wagner. Foi ele quem penetrou no imaginário de Genaro e soube com mestria e perfeição conservar a originalidade da obra e a isso foi fiel, na técnica e no material usado na restauração. Todos merecem ser louvados, mas sem a força criativa e criadora que emana de Wagner, o escondido por trás do cacau poderia se perder na recuperação daquela obra que se constitui, num verdadeiro laivo de criatividade de Genaro, um painel além do tempo.
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• Ruy Póvoas é contista, poeta, ensaísta, babalorixá,, mestre em Línguas Vernáculas, professor da UESC.