Um Kuarup Tupinakya
Fui ao Banco do Brasil da Paranaguá fazer um depósito para Suzi, lá encontrando um velho conhecido, o taxista E., de quem conhecia a sua história de vida, a mim contada em uma das muitas corridas que fizemos da Cayrú ao Pontal.
Foi na demorada fila de espera ao atendimento que me bateu a ideia de aqui contar esta história, associando a vida do E. ao caso talvez verídico contado por Antônio Callado no seu livro Quarup, de leitura quase obrigatória pelos esquerdistas, “escoceses” ou não, dos anos setenta. Nunca tive o prazer em ler o livro, mas Antônia, colega minha no Instituto do Patrimônio Histórico, sediado no Pelourinho, o leu e ostentava orgulhosamente a sua capa sempre que subia as escadas ao salão de trabalho dos arquitetos e estagiários encarregados dos projetos de restauração daqueles antigos edifícios corroídos pelo tempo.
Foi ela quem me contou a primeira parte da história que aqui relato, relacionando aquela narrada por Callado à do nosso taxista ilheense.
No romance de Callado, talvez baseado em fato real, um pequeno índio de uma aldeia xinguana foi levado à cidade por religiosos de alguma ordem missionária católica, ali estudando e demonstrando possuir um grande talento intelectual. Na adolescência, foi levado a Roma, onde continuou seus estudos, se formando e se pós-graduando em Teologia, com altos louvores. Na maturidade, voltou ao Brasil, justo na época da festa do “Kuarup”, uma das importantes festividades religiosas daqueles índios, baseada na comemoração da criação do mundo por uma certa entidade mítica que, um certo dia, cortou pedaços do tronco da árvore “Kuarup”, as fincando no terreiro da grande praça central de uma taba, prometendo aos índios que estes pedaços de tronco se transformariam em novos seres humanos, desde que todos voltassem às suas ocas, não podendo nenhum casal dar uma durante a noite. Um casal quebrou o compromisso, quebrando-se, então, o encantamento, e os troncos nunca mais se transformaram em homens de verdade…
A importante festividade, até hoje comemorada, relembra aos índios este episódio lendário, servindo como elemento de coesão grupal de suma importância. Cantam e dançam os homens, em grandes rodas, com corpos maquiados especialmente para tal festividade. Foi numa destas comemorações que volta à sua aldeia o índio que quase já não mais falava o português ou a sua antiga língua natal.
Na hora da festa, o índio maduro tirou a sua batina e, pelado, pintou o seu corpo como os seus irmãos. Entrou na roda, cantou, dançou, e algo lá dentro da sua alma o fez relembrar os antigos cânticos na sua língua ancestral. Depois da festa, o nosso padre católico recusou-se a vestir, novamente, a sua batina negra, mantendo-se pelado como os seus irmãos da aldeia e nunca mais quis voltar a Roma ou ao convento em que fora criado. A memória adormecida da sua língua materna voltou imediatamente à tona, voltando ele a ser 100% índio, ali ficando, vivendo como índio, até a sua morte…
O caso do meu conhecido E. foi bastante semelhante a esta aqui narrada, nas suas linhas gerais.
Na sua pré-adolescência, acompanhou a sua mãe à Alemanha, com o padrasto alemão com quem esta se casara. Logo, aprendeu um límpido falar alemão, na sua convivência diária com os amigos de uma pequena cidade daquele próspero país. Depois de muitos anos, ali vivendo como alemão, com documentação quase totalmente regularizada, volta ao Brasil numa época de fim-de-ano para passar um carnaval aqui na Terra de São Jorge.
Chegado o dia de se apresentar no nosso aeroporto para o seu retorno, uma força interior mais profunda o fez desistir de subir no avião para a volta à sua casa materna. E foi ficando, ficando, até o dia de perder o direito de voltar a ser alemão; não conheço bem este ponto da sua história de vida mas, parece que esteve num consulado daquele país para resolver algum detalhe burocrático e, o seu fino domínio da língua germânica fez os funcionários consulares o oferecerem um “jeitinho brrasilerro” para que este voltasse ao mais próspero país europeu, onde apenas 2% da população é considerada pobre. Não quis. Uma energia ancestral o prendeu à sua terra, preferindo ficar por aqui, onde voltou a ser mais um ilheense da classe média, vivendo do que ganha, dirigindo um táxi da Praça Cayrú.
