SAMUEL CELESTINO

Lula poderia fazer, mas preferiu não se aventurar numa questão delicada, embora essencial à compreensão da história republicana contemporânea.

A presidente Dilma Rousseff talvez o faça e deu sinais positivos no discurso da sua posse na Câmara dos Deputados, ratificado pela nova ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário: cumprir as metas do Plano Nacional dos Direitos Humanos, o PNDH 3 que lançará luzes sobre os obscuros acontecimentos registrados durante a ditadura militar.

É uma questão melindrosa, mas nem tanto. Se o Brasil se transformou numa democracia moderna e dá sinais de que poderá ser uma economia respeitável nos próximos seis anos, por que temer abrir o baú do regime militar que se iniciou há 54 anos? Luis Inácio ensaiou, sob pressão, projetar luzes sobre a era das trevas, mas não foi à frente, justo quando contava com o apoio do povo brasileiro traduzido nos seus índices extraordinários de popularidade.

Ao recuar, gerou uma polêmica que envolveu setores da igreja, dos intelectuais e uma reação quase inaudível das Forças Armadas. No seu discurso de posse, Dilma Rousseff, em determinado trecho (dos mais aplaudidos pelos parlamentares), disse que gostaria que, naquele ato, estivessem presentes “os companheiros que ficaram no caminho”,eufemismo que usou para lembrar dos mortos e “desaparecidos” na ditadura. Uma bela homenagem.

Convidada por ela, estava na sua posse um punhado de mulheres que também sofreram as agruras da prisão e das torturas nos porões da ditadura militar. Quando Lula tomou posse para o primeiro mandato, época em que o PT era um partido com característica de esquerda (hoje, igualou-se às demais legendas que esqueceram para que servem, a não ser eleger políticos, sem ética e sem princípios), esperava-se que ele abrisse à História os documentos da ditadura que ainda existem.

Fechou os olhos, como se isso fosse um ato normal, quando os brasileiros necessitam saber o que aconteceu entre 1964 e 1985, mais precisamente durante a vigência do Ato Institucional Nº 5, editado no final dos idosde1968, quando a ditadura tirou a máscara e impôs os anos de chumbo, emasculando a cidadania, a censura, suspendeu o instituto do habeas corpus, dando margem a uma reação de setores de oposição, cujos integrantes – alguns deles – foram caçados e presos pelo aparelho do Estado ilegítimo.

Parte dos documentos foi perdida com o passar dos anos, milhares dos quais destruídos. Parte da história dos acontecimentos registrados na época desapareceu; outros foram documentos incinerados, como no estranho episódio da Base Aérea aqui em Salvador,um enigma porque nada foi apurado ou chegaram ao conhecimento público.

Outra parte, em quantidade razoável, que estaria guardada (!) no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, também se perdeu num incêndio, segundo relato das “autoridades”.

Na sua posse, a ministra Maria do Rosário, petista, pediu em discurso que o Congresso analise outra proposta polêmica, encaminhada pelo governo Lula. Quer que os congressistas aprovem a criação da Comissão da Verdade, que ofereceria a versão oficial sobre os mortos e desaparecidos.
Disse ela: “O Estado brasileiro tem que resgatar sua dignidade em relação aos mortos e desaparecidos na ditadura”.

E continuou: “Como disse a presidente Dilma, não se trata de revanchismo” e as completou, mais adiante ao dizer que as Forças Armadas são “parte da consolidação da democracia” e que “certamente entre as Forças Armadas existe também o desejo de que tenhamos juntos esse processo constituído”.

Bom saber que durante o governo de Dilma afinal possamos vir a conhecer, não somente os documentos da ditadura, mas, como disse a ministra, o País precisa seguir no processo de reconhecimento das violações de Estado contra os direitos humanos no período do regime militar.

Disse: “Passados quase 50 anos do início do período de exceção no Brasil, é mais do que chegada a hora de agirmos com objetividade. Devemos enfrentar essas questões para uma consciente virada de página”. Observa-se, aí, que a ministra dos Direitos Humanos estabelece como ponto de partida o ano de 1968, que marcou a edição do AI-5. Estamos diante de um fato auspicioso.

No Chile e na vizinha Argentina, os períodos ditatoriais foram revolvidos e autores ou mandantes de crimes contra a humanidade punidos, como aconteceu há 15 dias em relação a Rafael Videla, um dos ditadores argentinos.

Nesses dois países, acentuem-se, as ditaduras foram de longe mais sanguinárias do que a brasileira. A ministra promete mais. Quer que o Congresso aprove a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) do Trabalho Escravo.

Esta emenda estabelece a expropriação e a destinação para reforma agrária de todas as terras onde haja trabalho escravo, presente em diversas regiões, principalmente no Norte-Nordeste e até aqui na Bahia há registros dessa prática.

Enfim, em relação à ditadura, não se quer revanchismo ou qualquer coisa semelhante, mas sim que a História possa, afinal, relatar a verdade a partir dos documentos ainda existentes. A nação precisa saber os fatos ocorridos, sem o quê a nossa democracia não estará completa.