LEMBRANÇAS DA EXTENSÃO RURAL (5)
O jipe Willians capota de aço subia firme a suave ladeira encascalhada quando, vupt, jazia estatelada uma robusta galinha ao lado do pneu traseiro do carona. Local: povoado da Ventania, zona cacaueira onde o português Joaquim Lapa, forte cacauicultor, mantinha um comércio e era considerado no pedaço. Época: início dos anos 70 do século XX.
Transitávamos –Jones, motorista com pouco tempo no escritório da Ceplac, ao volante, e este escrevinhador– rumo a mais uma visita de assistência técnica a uma fazenda de cacau. Após o repentino susto causado pelo acidente, agimos rápidos, e assim como numa espécie de transmissão de pensamento recíproco, olhamos atentamente para os arredores e, constatando não haver um pé de pessoa, socorremos a vítima e prosseguimos viagem, acordando no caminho nos mantermos calados. À tardinha no retorno, o Jones, irreverência em pessoa, e ávido por terminar de assistir a defunta interrogou-me: “Como é bicho, onde será o velório? ”. Disse-lhe que resolveríamos ao chegarmos, e se houvesse despesas, racharíamos.
Chegamos a Itapebi escurecendo. Desci e, fazendo uma preliminar, fui tomar ‘uma’ no Velho, bar que do alto de sua palafítica estrutura, descortinava um belo visual do Jequitinhonha; o Jones seguiu para guardar o carro e providenciar os apetrechos do cerimonial funéreo. Logo estava de volta e na porta: “Velho, bota uma da boa e capricha na dose, aliás, uma caprichada, uma loura bem suada e um copo”. E continuando: “Vamos comer a Ângela Maria aqui em seu recinto e você está convidado”.
Como o segredo estava indo por água abaixo, procurei aclarar o fato à clientela etílica presente, mas, como envolvia um veículo oficial, ao tentar esconder o xis da questão, enrolei-me todo, no que Jones notando o embaraço, interveio: “Stop! Pense na cantora, cara, e esquece a preocupação! Pra seu governo a bichinha tá tão cevada que parece ter sido criada a pão-de-ló pelo portuga. E tem mais: vai ser à molho pardo e está sendo preparada por uma amiga minha do brega de Cavalo Gazo, lá no Sempre Verde. Sim, e de passagem chamei o Flide”. (Era o nosso amigo Walflides, uma dessas amizades retada, sincera, e boa de farra).
Oito horas da noite, os avisados da honraria fúnebre presentes, no entanto eu – a pensar na possibilidade de alguma testemunha ocular– continuava tenso e meio jururu. O Jones, percebendo, veio ao meu encontro e: “Rapaz, relaxa de uma vez! O socorro foi rapidinho como se rouba, portanto incensurável. Ó, e se algum gaiato aqui quiser saber de pormenores, a gente enrola e diz que na verdade foi um presente de um fazendeiro do Fecha”. (Fecha, zona mista de cacau e gado).
No fim das contas o ato condolente fora bem concorrido e da despenada nada sobrou, só que, com a impecável “discrição” do Jones, no dia seguinte, do Rabo da Gata ao Havaí – veio irradiador da cidade – já se sabia do banquete funerário.
Confiando no apoio temporal, deixamos por um período de aportar nas bandas da Ventania. Nesse ínterim surge, para atrapalhar o projeto de esquecimento do caso, uma proposta governamental de alargamento do crédito agrícola da cacauicultura a qual tínhamos que realizar a divulgação. Foi desse modo que, mesmo com a pulga atrás da orelha, voltamos –bem antes do imaginado– a encarar o português.
Não mudara o costume: recebera-nos com a educação de sempre. Mais ou menos uma hora de papo, objetivo alcançado, pronto, chegara o momento de zarpar. Já festejávamos a confirmação da ausência de sinais testemunhais quando seu Joaquim com toda a calma do mundo, insinuando, nos interrogou se havíamos passado por ali há uns dois meses. Foi como uma ducha fria em nossas cabeças e, na de sim, sim, não, não, confessamos, o que foi o bastante para com a tranquilidade redobrada, nos dizer que a cantante pertencia ao administrador da fazenda e, com a maior simplicidade nos fazer a cobrança para repassar ao seu proprietário. Cobrança essa que, apesar de servir para brincadeiras e gozações de veladores e não veladores da galinácea, teve o lado positivo de solucionar a quebra de uma relação provocada por uma imprevisível galinha.
Nota: “Uma Imprevisível Galinha” fora o título do texto publicado no site www.itapebi.net em 2007 por ocasião do 3º aniversário da AFAI-Associação dos Amigos e Filhos de Itapebi. Este é uma versão resumida daquele e adaptado para esta Lembranças…
Heckel Januário
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