Guilherme Albagli


Ela nasceu em St. Gallen, nas montanhas suíças, por volta de 1920, numa família unida, assentada e com os padrões éticos muito comuns naquelas bandas.

Já quase beirando a adolescência, era ingênua a ponto de correr à estação de trem para ver chegar o carregamento de “nada dourado” ou de “macacos africanos” que um tio, de brincadeira, lhe anunciava. Afinal, na cultura suíça, palavra de tio tinha que ser verdadeira e, no seu raciocínio, não havia espaço para lorotas.

Estudou num curso técnico para livreiros, algo semelhante à biblioteconomia. Solteira até quase os quarenta, um dia viu lhe chegar um forte patrício, vindo do Brasil, em busca de uma esposa. Sofreu muito no nascimento do seu primogênito pois não era mais uma daquelas jovens que, pela natureza,  dão à luz como se dá um espirro.

Na nova cidade chegando, se enturmou com as gringas da terra, entre elas, a minha avó, que se tornou a sua melhor amiga por toda a vida.
Muito culta, além do Alemão, falava Francês e Inglês, língua que praticava todas as tardes de quarta-feira com  as suas amigas vindas da Inglaterra, França, Alemanha e Turquia, onde nascera a minha avó. Bebiam muito chá-preto, comiam bolos, tortas, biscoitos e tricotavam muito não sei o quê.


Adorava nadar, logo encontrando um grupo de homens nadadores que a convidaram para exercícios na travessia do Pontal ao Morro do Unhão. Pediu a devida licença do marido e este retrucou: “Se você participar deste grupo, o único a acreditar na sua boa reputação, serei eu”. É claro que a Martinha se esquivou das nadadas em grupo. Preferia nadar sozinha. Um dia, num piquenique-cultural para a sua turma de Francês, na Ponta do Eustáquio, onde hoje está o Boca do Mar, não percebeu que a correnteza estava muito forte, sendo por esta carregada até perto do Cristo, quando pescadores a perceberam e a recolheram.

Era caprichosa e dedicada como professora de línguas, cobrando muito barato, quase um pagamento simbólico e, quem não podia pagar, estudava de graça. Pela manhã, depois dos afazeres domésticos, redigia textos didáticos originais para os seus alunos, os colava em fichas de cartolina colorida, os ilustrando com recortes das imagens das revistas que recebia da sua terra. Professora Martha Mauchle era um verdadeiro incentivo ao aprendizado de línguas. Havia gente que estudava três línguas, com ela, ao mesmo tempo.

Era extremamente criativa. Nas vésperas dos aniversários das meninas das famílias amigas, ia nas suas casas buscar as bonecas desgrenhadas e as devolvia, no dia da festa, com roupa, sapatos e adereços novos. Criativa, sabia do apreço da garotada baiana pelo rolete de cana, pipoca e amendoim cozido e os oferecia no lugar dos brigadeiros, bom-bocados e quibes obrigatórios nas outras festas de aniversário da cidade. Organizava atividades lúdicas, como corridas de saco, ovo-na-colher e aquela brincadeira de se encontrar, com olhos vendados,  o lugar correto do rabo de um burro-sem-rabo desenhado numa cartolina. Na ampla biblioteca da sua casa, com as paredes recobertas com estantes cheias de livros em alemão, apresentava sessões de projeção de “slides” com imagens de montanhas e lagos da sua terra. Não esquecia de providenciar o fundo musical para cada sessão.

Tinha muito carinho por todos os seus alunos e, talvez, especialmente por mim. Um dia levou-me com os seus filhos Oscar ( músico na Orquestra Sinfônica da UFBA ), Félix ( gênio na matemática que multiplicava, de cabeça, qualquer número de três casas ) e Úrsula ( professora no Curso de Veterinária da UESC ), à sua pequena fazenda de cacau. A casa-sede era pequena o bastante para ser muito aconchegante, sendo ali servido, à noite, um “fondue” à moda do seu cantão: esfregava um dente-de-alho no interior de uma panela de barro vidrado, ali colocando pedaços de emental, gruyère e queijo-prato no lugar do cheddar impossível de se encontrar em Ilhéus naquele tempo. Punha um pouco de leite misturado à maizena, deixava tudo derreter, derramando, depois, um pouco de vinho branco seco, no lugar de um tal “kirsch”,  um certo aguardente de frutas do Centro Europeu. Distribuía pedaços pequenos de pão que eram espetados num garfo de cabo comprido, para cada um retirar, aos poucos, da panela, o queijo fundido. Esta foi a primeira das duas únicas vezes que provei deste prato.

Ao contrário de nós, de origem latina e levantina, era contida nas suas emoções, não chorando pelas mortes dos seus, mas segurando toda a dor na musculatura  contrita da sua face.

Frau Mauchle nos mostrou a possibilidade se viver com muita dignidade, mesmo com o orçamento apertado. Compraram um terreno na Baixa-Fria e, durante longos anos, foram terminando a construção da casa que, depois de pronta, tinha sua horta, pomar, galinheiro e uma das primeiras piscinas de Ilhéus; ali reunia as amigas e, depois, quando não mais nadava, a alugava a uma professora de natação para suas aulas. Tudo isso conseguindo com muita economia, costurando para os filhos e aproveitando até o vinagre que escorria das bananas que não eram transformadas em passa ou compota.

A minha família, que estava entre os seus grandes amigos, estava  quase toda fora de Ilhéus, na sexta feira passada, dia do seu enterro. Zé Carlinhos telefonou a Lolô, pedindo que me avisasse da sua morte, mas os seus muitos compromissos de mãe, esposa e profissional a fizeram esquecer do telefonema pedido. No sábado, assim que fui avisado da notícia, fui ver Úrsula e lhe repetir o quanto a sua mãe fora importante na minha formação profissional e humana. Ela foi um certo exemplo, também, de como de ser simples e grande, ao mesmo tempo.

guilhermealbagli@hotmail.com