Martini rompeu as fronteiras rígidas de sua instituição
04.09.12 – Mundo
Martini rompeu as fronteiras rígidas de sua instituição
Luiz Alberto Gómez de Souza
Sociólogo, diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes
Adital
Há personalidades irradiantes, como Gandhi, Luther King, Rosa Luxemburgo ou Helder Camara que não podem ser aprisionadas às instituições às quais pertenceram. São patrimônios da humanidade. O mesmo se dá com Carlo Maria Martini, que acaba de partir. Lendo sobre as exéquias de Martini em Milão, onde fora cardeal-arcebispo, me vem à mente outras, que participei em Roma, por ocasião da morte de Enrico Berlinguer, secretário-geral do Partido Comunista italiano. Longas filas de gente simples, que queria dar seu último adeus àquele que chamava as forças até então opostas a um compromisso histórico. Muitos se detinham diante do féretro e, muito à italiana, depois da saudação com o punho esquerdo fechado, faziam o sinal da cruz.
Sinto que a Martini homenagearam cristãos, crentes de outras religiões e não crentes. Ele dissera uma vez, parafraseando Teresa de Calcutá: “não podemos tornar Deus católico”, isto é, reduzido a uma instituição. Com as devidas proporções, o testemunho de Martini foi além de sua condição de cardeal da Igreja Católica. Padre jesuíta, notável especialista em Bíblia, fora diretor do Instituto Bíblico de Jerusalém e da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, depois convocado de surpresa por João Paulo II para tornar-se arcebispo de Milão, na cátedra de Santo Ambrósio, de onde saíra anos antes Montini para vir a ser Paulo VI.
Desde o início não quis fechar-se no diálogo interno de sua diocese. Com o filósofo Massimo Cacciari, que foi prefeito de Veneza e militante do antigo Partido Comunista, fez um primeiro desenho do que seria a “Cátedra dos não crentes”, para debater com um amplo público os grandes temas da sociedade. Sinal e testemunho de pluralismo num mundo fechado em ideologias em conflito.
Deixou um fortíssimo testamento em forma de entrevista, publicado um dia depois de sua morte: ”A Igreja ficou duzentos anos para trás”. Entretanto esperava: “poderemos buscar pessoas que sejam mais livres e mais próximas do povo, como o bispo Romero e os mártires jesuítas de El Salvador. Onde estão entre nós os nossos heróis para nos inspirar? Por nenhuma razão devemos limitá-los aos vínculos de uma instituição”. E prosseguia: “Onde estão as pessoas cheias de generosidade como o bom samaritano?…Pessoas que estejam perto dos pobres, que estejam cercados por jovens e que experimentem coisas novas”. Creio que podemos dizer que Martini é um desses heróis.
Também, dentro de sua própria Igreja, sempre foi uma personalidade instigante e perturbadora. Assim como Luther King fizera sua grande oração, “Eu tive um sonho”, ele também, em 1999, por ocasião de uma reunião dos bispos europeus, apresentou seu sonho, para que a Igreja, num futuro concílio, enfrentasse temas urgentes, como a sexualidade, a posição da mulher na sociedade e na Igreja e outros mais internos, como a disciplina do matrimônio ou a participação dos fiéis nos serviços (ministérios) da Igreja. E em várias ocasiões pedia coragem para medidas concretas. Indicava que o celibato era uma vocação e “talvez nem todos tenham o carisma”. Esperava uma mudança diante do tema dos preservativos. Para ele, Paulo VI quis “assumir pessoalmente a responsabilidade de decidir sobre os anticoncepcionais” (na sua encíclica de 1968, “Humanae Vitae”).E continuava em 2008: “Essa decisão na solidão não foi, no longo prazo, uma premissa positiva para tratar dos temas da sexualidade e da família” . Sobre a sexualidade indica no testamento: “Devemos nos perguntar se as pessoas ainda ouvem os conselhos da Igreja em matéria sexual. A Igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou somente uma caricatura na mídia?”.
Expressava também suas decepções, já em 2008: “Houve um tempo no qual sonhei com uma Igreja na pobreza e na humildade… Uma Igreja jovem. Hoje já não tenho esses sonhos. Depois de 75 anos, decidi rezar pela Igreja”.
Na sua entrevista-testamento enfrentou o tema dos segundos casamentos. A partir de um exemplo concreto assinalou: “Uma mulher foi abandonada pelo marido e encontrou um novo companheiro que cuida dela e de seus três filhos. O segundo amor prospera. Se essa família for discriminada, não só a mãe é cortada fora, mas também os seus filhos. Se os pais se sentem fora da Igreja ou não sentem seu apoio, a Igreja perderá a geração futura… O amor é um dom. A questão sobre se os divorciados podem comungar deve ser invertida. Como a Igreja pode ajudar, com a força dos sacramentos, aqueles que têm situações familiares complexas?”.
Na última eleição para o papado, alguns sonhávamos, ingenuamente, com a eleição de Martini e dizia-se: “É preferível um Martini ‘bianco’”, jogo de palavras entre a bebida e as vestes papais. O pretexto foi seu mal de Parkinson adiantado, mas dificilmente seria eleito por sua posição crítica que perturbava boa parte dos cardeais eleitores.
Seu último testemunho de vida foi sobre o que se chama “a obstinação terapêutica”.Já o fizera em 2007, no caso da morte de Piergiorgio Welby, doente terminal com distropia muscular, que pediu a suspensão das terapias. “As novas tecnologias que permitem intervenções cada vez mais eficazes sobre o corpo humano requerem um suplemento de sabedoria, para não prolongar os tratamentos quando já não ajudam à pessoa.” Nos últimos dias, coerente com o que pensava, sem conseguir mais engulir, recusou a inserção de uma sonda nasogástrica. Estava preparado para a última viagem.
Termino com um belo artigo de Eugenio Scalfari, fundador de La Repubblica:
“Eu não tenho fé no além e não a busco. Ele sabia disso e nunca fez nada para me converter… Ele queria me oferecer a sua experiência e talvez utilizar a minha. Mas qual experiência? Certamente não a do mundo, mas sim a da alma, dos instintos, dos sentimentos, dos pensamentos. A última vez que nos encontramos, no inverno passado, eu lhe levei o meu último livro intitulado Eros, que certamente não é uma divindade cristã. Mas depois de ter revirado o livro entre as mãos trêmulas, ele me perguntou se o protagonista do livro era o amor, e eu respondi que sim, que era um livro sobre o amor e, acima de tudo, sobre o amor pelos outros. E ele fez ‘sim’ com a cabeça, para dizer que o presente lhe agradava. Quando nos despedimos, ele me sussurrou ao ouvido: ‘Rezarei pelo senhor’, e eu respondi: vou pensar no senhor. E ele me sussurrou ainda: ‘Igual’.Hoje, penso muito nele. Ele, à imagem daquele instante final, certamente pensou que estava atravessando a porta da vida eterna. E eu acho que ele pensou nisso, e isso me consola pela sua perda”.