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A revolução de Francisco. Sem corte, rubi e camareiros
A santidade e o currículo do papa. Artigo de Massimo Faggioli
“Seria uma loucura renunciar ao conselho de Bento”, comenta o papa Francisco
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A revolução de Francisco. Sem corte, rubi e camareiros
Às quatro da tarde, com o calorão romano em seus melhores dias, dois guardas suíços uniformizados e um gendarme ficam na entrada da Casa Santa Marta, a residência do Papa e de cerca de quarenta bispos, monsenhores e leigos que trabalham no Vaticano. É um sinal: o “número um” se encontra aí. A bandeira branca e amarela com os escudos vaticanos permanece imóvel frente às janelas do segundo piso deste paralelepípedo anônimo, construído a pedido de João Paulo II, em meados dos anos 1990, para que os cardeais se hospedassem ali durante os Conclaves.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 12-07-2013. A tradução é do Cepat.
Trata-se da casa de Francisco. Após se identificar, o hóspede desce pela escada semicircular, austera e um pouco fria, que conduz ao hall. Ali, atrás do enorme balcão, um leigo com traços orientais e traje cor tabaco fica atendendo. Silêncio absoluto. O verão também é sentido em Santa Marta e, além disso, os hóspedes sabem quem a qualquer momento pode aparecer no elevador, do outro lado de uma porta, no refeitório ou numa das salinhas. Quando alguém deixa seu quarto em Santa Marta, precisa estar bem vestido, é claro.
Lá dentro, no hall, há outro guarda suíço e outro gendarme, ambos vestidos como civis. “Disseram para esperar numa das salinhas, que tem poltronas estofadas com tecido verde. O Papa – conta nosso interlocutor, recebido em audiência privada – chegou de repente, sozinho, sem secretários, nem mordomos. Estava com um envelope com alguns rosários. Ao final do encontro, ele mesmo abriu a porta e me acompanhou ao pé da escada”. É uma cena que descreve muito melhor do que outras as mudanças que estão ocorrendo no Vaticano.
A Casa Santa Marta é algo entre hotel e casa do peregrino, razão pela qual é muito difícil que nela se instaure o sentido de corte, tão evidente no Palácio Apostólico, com sua dignidade renascentista. A decisão de permanecer na residência em que se hospedou como cardeal durante o Conclave (tomada “por razões psiquiátricas”, porque não queria o “isolamento”) foi explicada por Francisco ao seu amigo e sacerdote argentino Enrique Martínez, “Quique”: “As pessoas podem me ver, levo uma vida normal, como no refeitório com todos…”. E para o café não há camareiros, mas uma máquina de moedas no corredor.
O seu quarto fica no segundo piso, é o de número 201. Têm paredes branquíssimas, uma sala com duas pequenas poltronas e um escritório, um livreiro, tapetes persas, assoalho de cor clara (e muito lustrado), um espaço para dormir com uma imponente cama de madeira escura e um banheiro. Esta suíte estava reservada para os hóspedes importantes do Papa, como o patriarca de Constantinopla Bartolomeu I. Quando se encontraram, o Papa lhe pediu perdão brincando: “Desculpe-me se roubei seu quarto…”. “Eu a deixo de muito boa vontade” foi a resposta do Patriarca ortodoxo.
Nos quartos ao lado do seu vivem dois secretários: o que Francisco “herdou” de Ratzinger, o maltês Alfred Xuareb, e o que ele próprio escolheu, o argentino Fabián Pedacchio. Figuras que, sem sombra de dúvidas, são menos incômodas e poderosas em relação aos seus predecessores. Jorge Mario Bergoglio, ao continuar se considerando como um sacerdote a serviço de Deus (e, portanto, ao serviço dos demais) não é um monarca; continua sendo o mesmo que era antes do dia 13 de março, que mudou a sua vida (e que o impediu de usar a passagem de volta, que já havia comprado para Buenos Aires).
Desta forma, o papa Francisco decidiu continuar vivendo no mesmo lugar, embora tenha se mudado de quarto, porque durante o Conclave usava um no mesmo piso, o 207. Decidiu não ocupar o aposento papal: o “Aposento”, assim com maiúscula, como se conhece no jargão vaticano essa entidade que representa o mais estreito círculo de colaboradores. Abriu mão de morar nele, mas tomou posse e, ao fazer isto, ficou impressionado com suas dimensões: “Aqui há lugar para 300 pessoas!”. Não se trata de uma vila real, mas é possível entender a reação de alguém que está acostumado a viver (sendo cardeal) em alguns quartinhos e a arrumar a cama todos os dias.
As primeiras novidades chegaram durante o Conclave. Assim que foi eleito, e antes de colocar o hábito branco, Francisco foi abraçar o cardeal Angelo Scola, seu “adversário” durante os escrutínios. Em seguida, veio a rejeição em colocar um dos 45 pares de sapatos vermelhos que tinham sido preparados para a ocasião; melhor os pretos de sempre. Mais do que questão de preferência, era uma questão de ortopedia, pois o calçado usado serve para caminhar melhor. Nada de cruz peitoral de ouro, nada de anel papal de 18 quilates. Nada de um enorme carro blindado com matrícula “SCV 1”, o almirante de uma frota vaticana que desempoeirou seus veículos mais sóbrios. Nada de escolta, nem de enormes manobras de gendarmes para os deslocamentos, inclusive mínimos, dentro do minúsculo Estado.
O pequeno mundo vaticano, que para dom Marcinkus parecia “uma aldeia de lavadeiras”, primeiro levantou a sobrancelha, depois tratou de se adequar, como foi visto dois dias após a sua eleição, quando todos os cardeais que saudaram o Papa na Sala Clementina carregavam cruzes de ferro e haviam deixado as cruzes de ouro e pedras preciosas na gaveta.
Em Santa Marta há dois elevadores e sempre se procura deixar um livre para o inquilino mais importante. Porém, muitas vezes, Francisco usa o outro. Dois bispos o encontraram dentro do elevador, justamente antes que as portas se fechassem. Um pouco envergonhados, foram para o fundo, mas o Papa com um sorriso disse-lhes: “Não mordo”. As anedotas superabundam. Às vezes, claro, um pouco exageradas, como a do guarda suíço que fez escala noturna e a quem Francisco teria levado um sanduíche. Bergoglio se desloca da Casa Santa Marta a pé. No sábado, 16 de março, rejeitou com um enfático gesto com as mãos (como se estivesse dizendo: “estão loucos?”) os carros disponíveis para que percorresse cerca de 50 metros. Em outra oportunidade, ao sair de sua residência, encontrou-se com um bispo que estava parado na entrada: “E você, o que faz aqui?”, perguntou-lhe. “Estou esperando que venham me buscar”, foi a resposta do prelado. “E não pode ir a pé?”, respondeu-lhe Francisco.
Um Papa “normal” e, justamente por esta razão, extraordinário. Que repete as palavras antiquíssimas e sempre novas do Evangelho. “Palavras surpreendem muito – diz-nos o professor Andrea Riccardi, historiador da Igreja -, porque ressoa de forma especial a autenticidade de sua pessoa”.
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A santidade e o currículo do papa. Artigo de Massimo Faggioli
Com a decisão anunciada de canonizar João Paulo II e João XXIII, o Papa Francisco deu um sinal inequívoco sobre a sua interpretação do Vaticano II.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio HuffingtonPost.it, 06-07-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
João Paulo II será “santo subito”, ou quase súbito – para parafrasear a famosa faixa levada pelo Movimento dos Focolares para a Praça de São Pedro, depois da morte do Papa Wojtyla. Esse fato é, a seu modo, parte do pontificado do próprio João Paulo II, que mudou a política das canonizações como nenhum outro papa na Igreja moderna.
Mas o anúncio feito no dia 5 de julho pelo Vaticano da próxima canonização (até o fim do ano) de João Paulo II e de João XXIII também pertence à particularíssima transição entre outros dois papas, Bento XVI e Francisco – uma transição tão particular que viu no mesmo dia 5 de julho a publicação de uma encíclica, Lumen Fidei, que pertence formalmente ao pontificado Bergoglio, mas que foi claramente escrita por Bento XVI e pouco mais do que apenas assinada pelo Papa Francisco.
De fato, é fácil compreender que a visita a Lampedusa da segunda-feira, 8 de julho, será o primeiro ato magisterial público do Papa Bergoglio fora de Roma e que, portanto, se sobreporá ao breve “news cycle” dedicado à Lumen Fidei.
Não há motivo para duvidar da vontade do Papa Francisco de proclamar santos tanto João Paulo II quanto João XXIII (para o qual Francisco abriu uma exceção processual relativa ao milagre). Mas é sabido que, na história da Igreja recente, a promoção aos altares de pares de papas sempre serviu para dar um contrapeso a beatificações e canonizações de pontífices controversos: na época do Concílio Vaticano II, foram as causas de Pio XII e João XXIII, o papa do pré-Vaticano II e dos “silêncios” sobre o Holocausto, e o papa que convocara o Concílio; no ano 2000, tratou-se da beatificação do reacionário Pio IX e de João XXIII; hoje, se trata de João Paulo II e de João XXIII.
Se é verdade que para todos os papas dos últimos 150 anos (com as exceções de Leão XIII, Bento XV e Pio XI) foram iniciados (e, em alguns casos, concluídos com sucesso) os processos canônicos, também é verdade que João XXIII sempre esteve presente, nos últimos 50 anos, de modo constante. Poder-se-ia afirmar que Angelo Giuseppe Roncalli-João XXIII é necessário para conferir legitimidade e credibilidade a uma práxis, a de declarar santos os papas, que começou em tempos modernos com a Igreja “assediada” pela modernidade entre o fim do Estado pontifício em 1870 e a luta contra o “modernismo” teológico com Pio X, no início do século XX, mas que hoje refere-se a papas pertencentes a uma tipologia diferente de eclesiásticos, de homens religiosos, de líderes.
Mas não se pode deixar de notar uma contradição entre a visão de Igreja do Papa Francisco explicitada nesses meses (uma Igreja humilde e pobre) e os significados subjacentes à decisão da Igreja de declarar “santo” os papas seguindo um procedimento semelhante ao necessário para todos os outros cristãos candidatos à honra dos altares. O costume de declarar santos os papas tornou-se típico só recentemente do ponto de vista histórico, enquanto era totalmente episódico na história da Igreja anterior.
O que chama a atenção na história das canonizações papais recentes é que, no caso de João XXIII, o debate sobre a sua santidade sempre foi parte integrante (desde 1963, ano da sua morte) do debate sobre o Vaticano II como “momento de graça da Igreja” ou como erro que beira a heresia. Com a decisão anunciada, o Papa Francisco deu um sinal inequívoco sobre a sua interpretação do Vaticano II.
Ainda em 1962, um estudioso dos processos de canonização, Piere Delooz, escreveu que a importância do “fazer santos” não reside principalmente nos “santos” que são proclamados, mas naqueles que “fazem” esses santos, ou no tipo de grupos e de Igreja que pressionam por essas canonizações.
O anúncio relativo à canonização de João Paulo II e de João XXIII também fala disso. Em maio de 2011, com o Papa Bento XVI, quando se falava de uma dupla canonização de João Paulo II e de Pio XII, era legítimo se perguntar se essa decisão significaria uma domesticação das novidades trazidas pelo Concílio Vaticano II; mas com a dupla João Paulo II–João XXIII, o sinal desse binômio muda, e não pouco, para se compreender para onde está indo a Igreja Católica do Papa Francisco.
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“Seria uma loucura renunciar ao conselho de Bento”, comenta o papa Francisco
“Você não imagina a humildade e a sabedoria deste homem… Nunca renunciaria ao conselho de uma pessoa deste tipo. Seria uma loucura de minha parte!” São palavras do papa Bergoglio sobre Bento XVI. Palavras que disse por telefone a Jorge Milia, jornalista, escritor e ex-aluno de Bergoglio. Elas foram incluídas pelo próprio Milia em um artigo publicado no blog de Alver Metalli, “Terre d’America”.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 11-07-2013. A tradução é do Cepat
O escritor começa dizendo que o Papa se queixou de ter recebido dele uma carta com 12 páginas. “No entanto, não posso negar que lhe fiz rir…”, respondeu-lhe Milia. “E riu. Por essas razões que ninguém pode explicar, muito menos eu, ainda tolera minha prosa, assim como há tantos anos, quando éramos professor e aluno. Disse-lhe que comecei a ler a encíclica “Lumen Fidei” e ele abriu mão de qualquer mérito pessoal. Comentou que Bento XVI tinha feito a maior parte do trabalho, que era um pensador sublime, desconhecido ou que a maior parte das pessoas não entende”.
Em seguida, o escritor cita outras palavras do Pontífice: “Hoje estive com o velho… – assim, à moda argentina, com aquele caráter afetuoso que a palavra lhe dá – conversamos muito, para mim é um prazer trocar ideias com ele”.
“E, de verdade, quando fala de Ratzinger – sublinha Milia – o faz com muito reconhecimento e ternura. A mim me dá um pouco a sensação de alguém que reencontrou a um velho amigo, um ex-companheiro de classe, daqueles que se encontra de vez em quando, que frequentava a escola um ou dois anos acima e que, de alguma maneira, admiramos, talvez com as diferenças polidas pelo tempo, suavizadas”.
Por telefone, Francisco acrescentou: “Você não imagina a humildade e a sabedoria deste homem”. Milia respondeu: “Então, você o tem perto…”. “Nunca renunciaria ao conselho de uma pessoa deste tipo. Seria uma loucura de minha parte!”.
Em relação à possibilidade de se relacionar com as pessoas, Francisco disse ao seu amigo e xará: “Não foi fácil, Jorge, aqui há muitos “patrões” do Papa e com mais tempo de serviço”.
“Depois comentou – escreve Milia – que cada uma das mudanças que introduziu lhe custou esforços (e, suponho, inimigos…). Entre estes esforços, a coisa mais difícil foi a de não aceitar que se ocupassem de sua agenda. Por isso é que não quis viver no palácio, porque muitos papas acabam se tornando “prisioneiros” de seus secretários”.
“Sou eu que decido a quem ver – disse Francisco a seu ex-aluno -, não meus secretários… Às vezes, não posso ver quem gostaria porque preciso ver quem quer me ver”.
“Esta frase me surpreendeu muito – observou o escritor. Eu, que não sou Papa e que não tenho seu poder, sinto que o coração se acelera quando espero um amigo querido e não sei se poderia dar a precedência para outro em seu lugar. Ele, ao contrário, priva-se do encontro que gostaria para estar com quem o solicita. Disse-me que os papas estiveram isolados durante séculos e que isto não é certo, o lugar do Pastor é com suas ovelhas…”.