Meu Chão
No aniversário da cidade, como é costume, eventos oficiais e comemorativos acontecem. Alguns deles devem lembrar talvez o sergipano Félix Severino do Amor Divino. O primeiro homem que pisou este solo de Itabuna e, no lugar denominado Marimbeta, hoje bairro da Conceição, ergueu uma casa de taipa, plantando ali uma roça de cereais e cacau. O primeiro homem que recuou a mata hostil e impenetrável. A mata que respirava no dia como se fosse à noite, de tão fechada. Severino do Amor Divino: o desbravador que primeiro conversou com os bichos e cultivou o solo úmido na solidão verde da mata.
Falar do início da cidade é tocar em seu parto épico, tempo de solidão feita suor, talhos, atalhos e lágrima. Buscar os vestígios do que a cidade ainda estava longe de ser. Dizer daquele homem e os outros que vieram depois regados de paixão pela terra, latejando sentimentos na brasa verdejante de ventos gemedores, que acenavam com grandeza e potência. É lembrar a morte na febre. Na picada. Na cangalha. No salto. Na rede. Na capanga. No galope. De véu e grinalda nas léguas tiranas. Tempo de uma flor que deu um fruto com a cor de ouro, brotando a esperança em qualquer parte das léguas da promissão. Falar do visgo desse fruto, que era forte, do homem que era ainda mais forte.
Desbravando a terra, penetrando, construindo arruados, implantando e consolidando a lavra do cacau, o sergipano tem amanhecer fundamental na formação de uma saga feita de cobiça e morte. Pouco mais de cem anos depois parece um sonho, a cidade pulsar num corpo incessante de quase duzentos e cinqüenta mil habitantes. Pulsando e se impulsionando com o trabalho de sua gente, escalando o azul do céu com edifícios e repercutindo esse mistério que é o homem engastado no pasto da memória dentro dessa coisa a que se chama vida.
Ventos pioneiros percorrem hoje o chão de minhas raízes. Eles acendem em mim essa escrita enorme na terra lavrada com mãos grossas. O machado na mão, o cinturão de cipó, o facão na bainha. Era isso o homem? Tecer na selva de si mesmo e de fora o velho aprendizado da utopia? No rigor do dia, golpes e cortes, domar o tempo com voz frugal? Pelas mãos da aurora dispor a vontade coesa do caos em que pretendia se estender por serras e baixadas? Examino neste instante essas mãos, pernas e rostos, vermelhos, pretos, brancos, esses elementos rústicos trabalhados em músculos e tendões.
Escuto esses passos de gume, bebo água na talha sustentada na base com o encaixe de putumuju. Sento-me no banco de vinhático. Fera ferida e sonora, vejo que esse homem grapiúna renascia no verde pelas mãos da aurora, como um mato qualquer. Na neblina inclemente, na serra com onça, no açoite do vento. Comia insetos e bebia água de ribeirão. Enxergava no escuro com luz de candeeiro. Contava os dias com a passagem da lua. A folhinha nascia dos talhos feitos na jaqueira. No entardecer, conversava com os sapos na lagoa, Dormia cedo, bem cedo, embalado nos braços do crepúsculo.
Homem e mulher no coito de onça na cama de vara, mal a noite deitava o manto escuro lá fora. A mulher também com as mãos no toco. No cabo. No burro. No ventre. Nos porcos. No fogo. No buraco. Nos olhos. Jogava mãos de milho para as galinhas assanhadas de fome no terreiro. Homem desbravador e mulher parideira. Como peixe e água, pássaro e céu, raiz e chão.
Quando a cidade completa 101 anos de emancipação política, eu vejo que não sou uma simples pessoa em separado. Tenho o mesmo sangue antigo, o mesmo sangue vermelho em seu curso histórico feito de paixão. Sinto-me bem quando leio os versos de Walt Whitman:
Eu me planto no chão
para crescer com a relva
que eu amo
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- Cyro de Mattos é autor premiado no Brasil e exterior. Atual diretor-presidente da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania.























































